“Não sou um colecionador de impulso. Pensei bastante sobre o tipo de coleção que queria. E, lá está, centrei-me no moderno e no contemporâneo, com foco nos trabalhos sobre papel”1
É com muito gosto que, vos apresento, inserido no leilão presencial 236 da Cabral Moncada Leilões, o núcleo de lotes provenientes da Coleção João Esteves de Oliveira. Colecionador, galerista, mecenas, amante das artes e das letras, João Borges Esteves de Oliveira (1946-2023) nasceu na cidade do Porto, estudou Economia e teve uma longa carreira na Banca internacional antes de se tornar galerista.
O gosto pela arte remonta à juventude. Conta-se que, quando terminou o curso na Faculdade de Economia do Porto, recebeu de presente dos seus pais um menino Jesus Bom-Pastor, em marfim, indo-português do século XVII. O jovem João Esteves de Oliveira preferia uma obra de arte em vez de uma mota ou uma viagem aos E.U.A, como era comum entre os rapazes da sua época 2.
Começou a comprar arte no início dos anos 70, tinha apenas 25 anos, quando adquiriu a primeira obra, um desenho de Jorge Pinheiro, artista muito apreciado pelo colecionador e bem representado neste leilão.
Durante os tempos em que trabalhou na Banca, viveu em Londres e Paris, visitou galerias, museus e antiquários e criou relações de amizade com vários artistas, nomeadamente Júlio Pomar e Jorge Martins que, mais tarde, desempenhariam um papel relevante na galeria.
Na sequência da reestruturação do sistema financeiro em Portugal, João abandonou a Banca, optou por uma situação de reforma antecipada e teve a coragem e a ousadia de inaugurar uma galeria homónima, João Esteves de Oliveira Trabalhos sobre papel Arte Moderna e Contemporânea. A sua missão era promover as obras sobre papel, independentemente das técnicas utilizadas nesse suporte, o que era inédito no panorama artístico português da época.
Para Julião Sarmento, “João era um homem bom que teve um sonho, abandonou o mundo dos números e dos negócios” e resolveu dedicar-se “àquilo que realmente o apaixonava” 3.
Abriu a galeria no Chiado, em frente ao Grémio Literário e a caminho da Faculdade de Belas Artes, onde tive o gosto e o privilégio de colaborar durante quase duas décadas, desde outubro de 2002 até à primavera de 2019. Desde então, sou consultora na Cabral Moncada Leilões.
JEO, como assinava nos prefácios dos catálogos editados pela galeria, é uma figura incontornável no mundo da arte contemporânea. A sua atividade enquanto galerista foi determinante para a valorização do trabalho sobre papel, conferindo-lhe uma visibilidade e um reconhecimento que até então lhe haviam sido recusados. Segundo Pedro Cabrita Reis, pela mão de JEO o desenho deixou de estar guardado nas pastas dos ateliers dos artistas e ganhou autonomia e identidade4. No campo das artes plásticas, JEO é uma referência para os artistas plásticos, curadores, críticos, colecionadores e para as pessoas do mundo das artes e da cultura portuguesa.
Como colecionador, tinha interesse em faiança portuguesa, porcelana chinesa de exportação dos séculos XVII e XVIII, e mobiliário renascentista. No entanto, o trabalho sobre papel foi, sem dúvida, o protagonista da sua coleção, já que o desenho era a disciplina que mais o atraía.
O gosto foi o principal critério de seleção dos artistas, quer como colecionador, quer como galerista. A maioria dos autores que expuseram na galeria já fazia parte da sua coleção e muitas obras da mesma provêm das exposições curadas pelo galerista. O próprio afirmava frequentemente, junto dos seus clientes, com orgulho e elegância: - “eu sou o melhor cliente da galeria!” Não podemos separar o colecionador do galerista.
Se percorremos este conjunto de lotes que vai a leilão, destacam-se algumas obras de autores modernistas que tiveram exposições individuais na galeria. Entre elas, destaca-se o desenho de Bernardo Marques (1898-1962), que integrou a exposição “Bernardo Marques de Museu”. Segundo o galerista, esses trabalhos não só eram de primeira escolha, como também foram selecionados para grandes exposições museológicas dedicadas à obra do artista5. Também se ressalva a aguarela de André Derain (1880-1954), adquirida pelo colecionador na exposição André Derain: O Ocaso de um Fauve, em 2015. O leilão reúne ainda obras de Almada Negreiros, Diogo Macedo, Júlio Reis Pereira e José Régio.
No contexto contemporâneo, realço as obras de Pedro Cabrita Reis, artista muito apreciado pelo galerista, designadamente o autorretrato “The Large self portraits” e a grandiosa obra “Cântico Negro”. O trabalho de Julião Sarmento figurou numa exposição “Women, Houses , Plants” e está reproduzido no catalogue raisonné da série do mesmo nome editada pela galeria em parceria com as Edições Almedina.
A coleção JEO integra núcleos autorais relevantes, especialmente de Júlio Pomar e de Jorge Martins, ambos representados neste leilão.
Sobressaem obras de artistas com carreiras relevantes na arte contemporânea: Ana Jotta, José Loureiro, José Pedro Croft e Jorge Queiroz, sem esquecer os lotes de nomes incontornáveis como Jorge Pinheiro, Fernando Calhau, António Sena, Álvaro Lapa, Ângelo de Sousa e Joaquim Bravo.
O leilão também inclui desenhos de artistas mais jovens, que expuseram os seus trabalhos no Chiado, designadamente Manuel Caldeira, Jorge Nesbitt, Marco Pires e Vasco Futscher.
Merecem referência especial trabalhos sobre papel de artistas internacionais de relevo, entre os quais se destacam: Sonia Delaunay (1885-1979), adquirida pelo colecionador na Sotheby’s; um retrato da autoria de Stephen Conroy (1964), proveniente da galeria Marlborough; uma obra de Matt Mullican (1951), adquirida na galeria MAI 36 e a obra de Sandra Vásquez de la Horra (1967), artista chilena que vive atualmente na Alemanha e que realizou uma exposição individual na galeria “Todas Íbamos a ser Reinas”, cujo trabalho é relevante na coleção JEO.
As obras que vão a leilão são testemunhos desse legado, cada uma delas carrega, não só a marca de seu criador, mas também o olhar atento, seleto e criterioso de um colecionador galerista que soube reconhecer a essência de cada obra.
Isabel Andrade Dias