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NOTA BREVE
SOBRE UMA COLECÇÃO EXCEPCIONAL

É, infelizmente, bastante pobre, ou mesmo exígua, a tradição colecionista em Portugal, tal como pobre é, e tem sido, a criação sustentada de um mercado de arte. A situação do País, ao longo de quase todo o século XX, cerca de 50 anos debaixo de uma ditadura, não propiciou, como em outros países europeus, ou nos EUA, um desenvolvimento liberal dos costumes, que pudesse fazer da arte objecto de curiosidade, de distinção ou de prestígio e, longamente, a sua sustentação partiu sobretudo do Estado, o que propiciou durante décadas, entre outras coisas, a arregimentação da arte pelo poder. A célebre política do espírito, que António Ferro pôs em marcha a partir de finais da década de 30, com a aprovação de Salazar, mais não fez do que dar uma oportunidade modesta, mas na maioria das vezes medíocre em ambição, a um grupo de talentosos artistas que, ao longo de décadas, consentiram em não exceder demasiado o preconceito de certas normas estéticas, impossibilitando, desse modo, a afirmação de um Modernismo coerente. Como sustentei antes1, em virtude disto, o Modernismo português foi quase marginal e as suas excepções, ao longo das décadas, o produto do esforço de corajosos artistas que, por vezes tendo que enfrentar as maiores dificuldades, ousaram ir para além dessa linha de horizonte colocada quase sempre numa zona controlável de navegação e de censura.

A instauração democrática não desfez totalmente esta estrutura, bem pelo contrário. A furiosa privatização da economia, nos anos imediatos à chamada Revolução dos Cravos, com a grande excepção mecenática da Fundação Calouste Gulbenkian, não abriu o País à crescente tendência democrática europeia para a liberalização da cultura, permanecendo assim a maior parte das actividades culturais dependentes do favor do Estado ou da conivência política, o que decerto contribuiu da pior maneira para a desejável criação de um mercado inteligente. A década de 80, quando finalmente o País se abria a olhar com desejo a integração europeia, veio modificar um pouco a situação. Um grande número de galerias, e mesmo de instituições vocacionadas para a arte, em que avulta o caso exemplar da Fundação de Serralves, foram abertas, e assim emergiu um renovado gosto pelo colecionismo, agora com traços democráticos. A que, todavia, faltou ainda a intervenção activa de uma crítica de arte informada, movida pela imprensa, e até o desenvolvimento de produção regular de história de arte, tanto fora como dentro das universidades.

A criação de um gosto, de hábitos de cultura, e mesmo de um desejo de posse, manifestado na vontade de obter, disputando-os, os bens simbólicos que só a arte possibilita quando existe mercado onde os ir procurar, leva, porém, muito tempo a ganhar consistência, e sucessivas crises económicas, algumas próximas ainda, em que mais recentemente avultou a pandemia, tão pouco contribuíram para a sua consolidação.

Tem sido, nesse aspecto, o mercado dominado pelas casas leiloeiras aquele que mais tem mantido esse interesse vivo, ainda que a sua necessária especialização, semelhante àquela que vai acontecendo pelo mundo civilizado, esteja longe de ter lugar. Do mesmo modo que continua por se fazer sentir a apetência das instituições públicas pela aquisição de obras de alto nível para as suas colecções, o que tão pouco estimula a apetência privada, que se vai distraindo em consumos mais espampanantes, como o de automóveis ou de roupas, preterindo, desse modo, a colecção de objectos de arte e a sua compreensão dinâmica. Mas assim, também, já que, ao menos por agora, raras vezes é possível encontrar, nos principais leilões que se vão realizando, a presença clara de grandes núcleos temáticos — mobiliário, arte antiga, arte moderna e contemporânea, jóias, etc. — que orientem o gosto para diversos patamares de sofisticação e de apetência, como acontece nas grandes casas internacionais. Esse esforço de criar um gosto e um desejo mais sofisticado está, pois, ainda hoje, comprometido por essa indefinição do crescimento económico e mesmo pela falta de uma informação consistente sobre arte, a que faltam revistas, páginas de crítica na imprensa e, sobretudo, a presença constante e visível da arte portuguesa em colecções públicas de referência, ou ancorada seguramente em formas de mecenato inteligente. É neste quadro, que é ao mesmo tempo sociológico, cultural e económico, que alguns leilões recentes têm aberto uma excepção. Algumas grandes colecções têm aparecido, nos últimos anos, em venda, evidenciando, desse modo, uma coerência de gosto, de cultura e de sentido do colecionismo por parte de grandes coleccionadores, o que decerto vem contribuindo para gerar, aos poucos, um novo clima, e mesmo novos hábitos culturais, de gosto e de sofisticação. Aí figuram nomes como os de Augusto Abreu, Jorge de Brito e outros. É neste âmbito que a realização do presente leilão adquire sentido excepcional, já que, promovido por uma casa de renome, nos traz de uma só vez uma excepcional colecção com obras de interesse museográfico que, em qualquer outro país, animariam o interesse das instituições. Não se esperando bons ventos desse lado, ao que se sabe, fique, ao menos, aberta tão grande e tentadora porta a que os colecionadores abram os olhos, espantados, para este verdadeiro desfile de preciosidades da arte portuguesa de quase um século e meio. Por esta janela poderemos então ver passar — alegremente e com a exaltação que nos dão os grandes momentos — desde o delicado Alfredo Keil, redescoberta urgente, aos grandes e insuficientemente compreendidos Marques de Oliveira e Silva Porto, aqui representados mais do que uma vez, sempre de proveniência excepcional. Pilares da arte portuguesa de oitocentos, pontes seguras da relação, de sempre desejada e alimentada, com a Europa.

Não falta, é claro, Malhoa, barómetro do gosto nacional, cheio de encanto e mão, nem muito menos o delicioso, e sempre surpreendente, Souza Pinto, cujo périplo francês lhe deu um jeito para fazer a transição do olhar impressionista para os primeiros sinais do Simbolismo. Nem a sempre grandiosa presença de

Columbano, um dos mais sólidos pintores da nossa tradição, cuja sensualidade só seria igualada, já em contexto modernista, por Eduardo Vianna, que também comparece à festa com excepcional natureza morta. Ou, depois, Aurélia e António Carneiro, pintores que, em outros reinos, seriam cobiçados pelos grandes deste mundo, mas que por aqui ainda passam ao alcance das bolsas mais modestas. E sobe tanto este conjunto que chega até ao génio de Amadeo, aquele a quem Almada chamou, e bem, PRIMEIRA DESCOBERTA DE PORTUGAL NA EUROPA NO SÉCULO XX. também aqui servido por exemplo maior, em tamanho e em qualidade. Segue-se depois, com coerência, um conjunto de excepcionais obras modernistas: Dórdio Gomes, Carlos Botelho, Sarah Affonso, o exaltante Mário Eloy, o admirável e raríssimo Júlio, pintor de invenção maior, o sublime Alvarez, ainda a ser lentamente redescoberto, e tudo isto a ser coroado por uma imponente e preciosa Vieira de museu.

Tão farto parecia este banquete, que já ninguém se poderia queixar, mas logo, e em surpresa, eis que chegam, de décadas sucessivas, um António Dacosta de 1948, de mítica referência, Cuidado com os Filhos, que Almada adquiriu na primeira exposição do Grupo Surrealista de Lisboa em 1949 e, adiante, os Resende, os Hogan, um admirável Cesariny, um consistente Pomar, e um célebre Circo de Campolide, do grande Nikias Skapinakis, de tonalidades gregas, chegando a procissão a José Escada, esse pintor maior que integrou os KWY, tão tardiamente entendido no seu grave silêncio.

Muitos ficaram, ainda assim, por nomear e, como se diz no saber popular, quando a esmola é grande o pobre desconfia. Mas, aqui, a esmola é a própria arte portuguesa, à espera sempre de ser redescoberta, e sobretudo amada, estudada. E, finalmente, internacionalizada, como lhe é devido, já que o merece desde Josepha d’Óbidos para não falar dos primitivos de quinhentos. Justamente para que haja Portugal fora do pequeno rectângulo, que é a missão das artes, e se faça do País parte integrante dessa maior Europa, que ainda nos espera curiosa...

 

Bernardo Pinto de Almeida
Historiador e crítico de Arte. Professor Catedrático na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto

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