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Sessão única | June 2, 2025  | 322 Lotes

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JOSÉ MALHOA - 1855-1933 «Adelaide» da pintura "O Fado" óleo sobre tela colada em madeira pequenos restauros assinado Dimensões (altura x comprimento x largura) - 40 x 54 cm Notas: integrou a Colecção Dr. Heribaldo Siciliano (1878-1943), São Paulo - Brasil, conforme etiqueta colada no verso, e, posteriormente, a Colecção Luiz Pinto Thomaz, provindo dos seus herdeiros.
Não integra o Catalogue Raisonné, embora se conheçam as duas versões finais, bem como diversos estudos - vd. SALDANHA, Nuno - "José Malhoa - Catálogo Raisonné". Lisboa: Scribe, 2012, pp. 160-163, nº CRJM/0422, CRMJ/0424, CRJM/0425, CRJM/0426, CRJM/0427, CRJM/0428.




O FADO DE ADELAIDE
Estudo de figura para O Fado de José Malhoa, c. 1909
Nuno Saldanha

Este estudo de figura para o quadro O Fado (1910), pintado por José Malhoa, é particularmente interessante, tanto do ponto de vista estético, como pelo importante documento que constitui, de uma das fases iniciais do processo de construção da imagem.
O Fado de Malhoa, obra incontornável, não apenas no contexto da carreira do artista, como da arte portuguesa em geral, é indubitavelmente uma das suas criações mais emblemáticas, populares e divulgadas, para além da indiscutível qualidade técnica e compositiva. Não sem alguma controvérsia, e até escândalo, tanto elogiada por uns, como severamente criticada por outros, ao longo dos anos. Acabando por se converter numa imagem que imediatamente associamos ao artista, a sua importância foi construída mais pela historiografia e crítica da Arte, que por iniciativa do próprio Malhoa.
A narrativa em torno de O Fado, não se limita à representação de uma cena boémia lisboeta. Por detrás da imagem imortalizada na tela, há uma história intensa, marcada por emoções cruas, conflitos sociais e, sobretudo, pela figura trágica e fascinante da mulher que serviu de modelo à protagonista feminina do quadro.
Neste cenário realista e carregado de emoção, destaca-se Adelaide, cujo percurso trágico e profundamente humano reflete o peso social, moral e emocional que a mulher carregava nesse universo. A imagem constrói em torno dela uma narrativa de força e vulnerabilidade, simbolizando não só o espírito do fado, mas também a condição feminina num meio opressivo.
Malhoa, pintor naturalista e atento observador da realidade popular, procurou retratar fielmente o ambiente típico do fado lisboeta, e para isso embrenhou-se na vida dos bairros mais típicos da cidade. O seu objetivo, não apenas meramente estético, procurava também captar a alma do povo, refletida no canto sofrido do fado e nas vidas dos que o interpretavam.
Partiu em demanda das raízes mais antigas e originais sobre o tema, rejeitando o carácter burguês que o fado já na época assumira. Não satisfeito com o uso dos habituais modelos, que empregou nos primeiros ensaios, percorreu os bairros mais pobres e degradantes da capital, até encontrar quem lhe servisse de arquétipo, a até de consultor.
As próprias origens do quadro, e da ideia subjacente à sua criação, nem sempre são coincidentes. O próprio Malhoa, e alguns dos seus biógrafos (Luta, 20 Mar. 1915), contam que ela surgiu a propósito de uma guitarra de fadista que o artista possuía no seu atelier, que o levou a interrogar-se sobre as origens do Fado.
Segundo o artista, de acordo com uma carta escrita ao seu amigo e colega Julião Machado, e transcrita num jornal do Rio de Janeiro (O Paiz, 20 Jun. 1910), era um tema nunca tratado anteriormente, o que lhe dera o ensejo de se dedicar aquele assunto. Teria sido esta curiosidade que o levaria às ruas da Mouraria, e do Bairro Alto, em busca de mais informação.
Outros, como Sousa Pinto, em 1928, referem, por sua vez, que a conceção original era a de narrar uma história trágica, na forma de um tríptico, com as três fases da perdição: a sedução, o fado e o desenlace (ou Fim), naquilo que Pinto associou ao “cruel e triste Fado”, pelo que o termo devia assim ser associado à ideia de Destino, mais do que à popular canção lisboeta. Esta versão é atestada pelos seus primeiros desenhos, datados de 1908, onde efetivamente se pode observar a primeira ideia. Ela parece ter surgido por volta de março de 1908, e não em 1909, o que se pode comprovar pelos desenhos assinados e datados pelo artista, de abril desse ano. (Fig.1) Esta datação está também de acordo com o relato do pintor, transcrito no jornal Imparcial (24 Fev. 1910), onde afirma ter levado dois anos a executar a referida obra.
Toda a aventura que Malhoa teve de passar para a longa execução da pintura, foi descrita pelo próprio, nas entrevistas publicadas no Imparcial, em fevereiro, e depois, com um colorido novelista digno de memória, no periódico brasileiro O Paiz, sendo de assinalar algumas diferenças na narrativa. Anos mais tarde, o relato seria repetido numa entrevista ao jornal Luta (20 Mar. 1915), numa versão cada vez mais fantasista.
Durante quatro meses o pintor percorreu os bairros de Alfama, Mouraria e Bairro Alto, em busca de modelos, tentando familiarizar-se com o ambiente. Posteriormente, passou dois meses trabalhando com modelos profissionais no seu atelier, mas que o deixaram muito insatisfeito com os resultados: “esses modelos não me davam nada do que eu sentia e via no natural”.
Através de um amigo fidalgo (possivelmente o Barão de Alvito), foi até à Tendinha do Rossio, onde conheceu um marginal que lhe prometeu apresentar um fadista castiço. Levado ao bairro da Mouraria, aí encontraria um personagem da Rua do Capelão, Amâncio Augusto Esteves, rufia, fadista e tocador de guitarra, que acabaria como modelo e “consultor” da obra. Depois de ver os esboços de Malhoa, retorquiu que aquelas personagens nada tinham a ver com um fadista. Seria ele quem, mais tarde, acabaria por apresentar ao artista, a conhecida Adelaide (ou Amélia, como é referido na primeira versão). Rapidamente se interessou por esta figura, vendedora de cautelas e mulher “da vida” que, na opinião de Amâncio, era uma perfeita “Severa”, e que Malhoa considerava “uma bela mulher, de seio rijo, braços esculturais, e rosto interessante”.  
Adelaide era uma mulher do povo, conhecida como “Adelaide da Facada”, alcunha adquirida num episódio violento que deixara uma marca literal e simbólica na sua vida. Frequentadora assídua das tabernas, onde o fado florescia, carregava consigo uma história de marginalidade, sensualidade e sofrimento.
Malhoa passou então 35 dias a estudar a Mouraria (cujas incursões lhe valeram alguns incómodos), e a casa de Adelaide, detendo-se nos pormenores do seu interior - o gato, cego de um olho, o “Escamado”, que chegou a figurar numa versão inicial, a cómoda com o croché, os santinhos na parede, o manjerico com o cravo de papel, o toucador com o espelho partido (por um chinelo da Adelaide), o cigarro, a garrafa de vinho sobre a mesa, o leque ou as bandarilhas. Comprou ele, depois, para o seu atelier, a típica cortina encobridora, na Rua da Regueira em Alfama, e o candeeiro de latão a Emília Pato, que morreria assassinada pelo amante no dia seguinte, aumentando assim o carácter novelístico desta aventura.
Tendo sido acordado com o Amâncio o início das sessões (pagas a 6 vinténs), logo começaram os problemas, com cenas de ciúme, insultos e pancadaria, com frequente intervenção da polícia. Por diversas vezes, o pintor teve de ir buscar os dois modelos ao Governo Civil. Amâncio era mais do que o companheiro de Adelaide; era uma figura de autoridade violenta, de paixão descontrolada, mas também de abuso psicológico e físico.
Em virtude da grande cicatriz visível na face esquerda de Adelaide que, consoante refere Malhoa, “mostra ainda o sulco de uma facada que retalhára a carne quasi da orelha à boca”, o pintor trocou a posição dos modelos, conforme se observa em alguns esboços conhecidos. Um outro estudo para o quadro, incluía ainda uma terceira figura feminina, por detrás da Adelaide, no canto superior esquerdo. Também a postura de Amâncio sofreu algumas alterações, dado que inicialmente tinha a cabeça levantada, cantando de boca aberta. A figura da Adelaide, apesar de terminada depois do Amâncio foi, no entanto, a mais trabalhada por Malhoa, o que se comprova pelos diversos estudos individuais conhecidos, datados entre 1908 e 1910, de que esta pintura é um exemplo.
O processo de criação não foi isento de conflitos. Malhoa refere o receio da modelo em ir ao atelier do pintor, com medo de figurar nalguma “scena escandalosa de lubricidade”. Depois de convencida pelo companheiro a deslocar-se a um meio que lhe era completamente estranho, Adelaide acabou por aceitar posar.
Para conseguir captar a autenticidade do momento, Malhoa pretendia mostrar Adelaide com as alças da camisa descaídas, e vestida apenas com um saiote branco, dando-lhe um ar mais brejeiro e provocador, conferindo-lhe uma imagem de meretriz dos bairros pobres da cidade, sugerindo uma sensualidade mais acentuada, e com os braços tatuados. É precisamente assim que ela é representada neste estudo, que parece transcrever a óleo, um desenho prévio (Fig. 2), embora aqui mais comedido, com apenas uma das alças descaídas.
Estas “liberdades” puseram à prova o ciúme de Amâncio, que não gostou da graça, e chegou a mesmo a intimidar o pintor, levando a mão ao bolso onde guardava a navalha, avisando que “não era para brincadeiras”!
Perante isto, o artista foi obrigado a maior contenção e, no quadro final, Adelaide surge com as alças compostas, com uma grande saia vermelha, sem tatuagens, sentada, a ouvir o “seu” fadista cantando e tocando guitarra (representado por Amâncio), envolta numa atmosfera densa e intimista. O seu olhar perdido, a postura resignada, o corpo envolto em sombras e luz, tudo contribui para a construção de um símbolo maior, da mulher como mártir silenciosa do seu destino (fado), presa entre a beleza da arte e a violência da realidade.
A decisão de alterar a representação original — cobrindo mais o corpo de Adelaide, por pressão social e moral — também revela muito sobre a época. Havia limites para o que era aceitável mostrar, e mesmo no campo da arte, Adelaide continuava a ser julgada.
Mais do que musa ou modelo, Adelaide tornou-se símbolo da alma lisboeta, da mulher que sofre em silêncio, mas que guarda em si uma grande profundidade emocional. A sua história, marcada pela marginalidade e pela luta pela sobrevivência, é também a história de muitas mulheres anónimas de baixa condição da Lisboa de então.
Não obstante a sua indiferença social, através do olhar de Malhoa, ela eternizou-se numa das obras mais icónicas do realismo português, onde a sua presença continua a interpelar o observador.
A narrativa em torno de O Fado é inseparável da figura de Adelaide. Ela representa, simultaneamente, a mulher “caída”, a vítima de violência, a musa silenciada, mas também a expressão de um povo. Como referia Artur Portela, “mais do que o descritivo plástico das figuras, se sente o amor, a luxúria, o fatalismo e a perdição da raça”.
A sua imagem na pintura é apenas a face de uma história muito mais intensa, feita de dor, resistência e uma estranha forma de dignidade.
Adelaide foi uma mulher real, com uma história de vida dramática, que se transformou em símbolo artístico e uma das mulheres mais propagadas da Cultura Visual portuguesa, apesar da invisibilidade e anonimato a que foi votada.
No cruzamento entre realidade e arte, o quadro de Malhoa e a narrativa que o envolve, revelam um retrato poderoso da condição feminina num contexto de opressão social e artística. E é precisamente essa circunstância que torna a figura de Adelaide tão marcante, tanto na história da pintura, como na memória cultural de Portugal.



A Cabral Moncada Leilões regista e agradece a disponibilidade do Professor Doutor Nuno Saldanha o texto e enquadramento
da presente pintura.

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