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euro_symbol€ 150,000 - 225,000 Base - Estimativa
PAULA REGO - 1935-2022 "Indian temple" (1961) óleo com colagens sobre tela algumas faltas na camada pictórica assinado no verso Dimensões (altura x comprimento x largura) - 106 x 93 cm Notas: integrou a exposição na Galeria Alvarez, Porto, em 1972, encontrando-se representada no respectivo catálogo, p. 9, onde se encontra a indicação da data da pintura."Indian Temple é uma pintura produzida na primeira fase da carreira de Paula Rego, iniciada no final dos anos 1950. A artista desenvolveu neste período um trabalho experimental no campo da figuração, utilizando o desenho automático e a colagem. Durante esta época estabeleceu também uma perspetiva crítica e uma atitude de resistência criativa em relação à ditadura em Portugal, colonialismo português e guerras coloniais e à discriminação e violência contra as mulheres.Apesar de Indian Temple se enquadrar nas coordenadas criativas e temáticas do início dos anos 1960, esta pintura foi apenas exibida — tanto quanto foi possível determinar até agora — em 1972, numa exposição organizada pela Galeria Alvarez no Porto. Foi também neste ano que outra pintura do mesmo período — Salazar a vomitar a pátria (1960), atualmente na coleção do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian — foi mostrada pela primeira vez em Portugal (Galeria de São Mamede, em Lisboa). Esta obra foi apresentada com o título reduzido a Vomiting para prevenir a ação da censura; mas, tal como em relação aIndian Temple, a artista e os galeristas acreditaram que o aparente desanuviamento do sistema repressivo do regime no período marcelista (1968–1974) permitiriam apresentar obras potencialmente escandalosas. Ambas as pinturas fazem referênciaexplícita a orgãos sexuais e manifestações corporais íntimas ― que assumem uma dimensão repulsiva quando associadas a António de Oliveira Salazar, exprimindo assim o desprezo da artista em relação ao ditador ―, e introduzem um comentário subversivo e desafiador relativamente ao regime ditatorial português e às normas morais e sociais.Indian Temple reproduz esquematicamente a estrutura de uma torre de um templo hindu com três elementos claramente definidos: a zona inferior com a entrada para o templo, dominada nesta pintura por um falo de proporções assinaláveis e suportada por duas espécies de colunas que assumem também formas orgânicas. Do lado esquerdo, uma estrutura em tons de cinzento aproxima-se de um falo, e do lado direito encontramos dois elementos interligados, assemelhando-se o que se encontra suspenso a um corpo nu ou a um feto. O friso, que medeia a entrada e a cobertura, é marcado por figuras orgânicas sobre fundo branco que reproduzem os relevos escultóricos das fachadas dos templos hindus, integrando ainda referências à tradição clássica europeia e à sua recriação modernista (a forma no extremo esquerdo lembra uma cariátide de Modigliani, e a do meio uma escultura reclinada de Henry Moore). A cúpula, preenchida por diversos elementos figurativos que acentuam o preenchimento escultórico na arquitetura característica dos templos na Índia, contém ainda recortes de imagens possivelmente retiradas de livros técnicos e jornais com fragmentos de mecanismos com rodas dentadas e pormenores de templos. Algumas destas figurações podem associar-se a elementos anatómicos e orgânicos, como falos, línguas, úteros e fetos e a manifestações relacionadas com o ato sexual, como ejaculações. Ainda na parte superior do templo, no lado esquerdo junto ao friso, é identificável uma espécie de torso escultórico grego com o desenho esquemático de uma figura humana sobreposto. Do lado direito, também por cima do friso, surge de perfil a cabeça de elefante do deus hindu Ganesha, ornamentada com recortes e colagens de elementos mecânicos, provenientes de livros ou jornais.A abordagem material e técnica desta obra segue o processo criativo automático que está na origem das «pinturas-colagens» realizadas pela artista a partir dos anos 1960 e que lhe permite encontrar as histórias que quer contar nassuas obras, bem como levar a cabo a sua «transmutação». A sobreposição de tintas a óleo, as camadas de diferentes tipos de papéis ― que incluem a presença de escrita impressa ― em colagens sucessivas, criando deste modo diferentes texturas, e a sua articulação posicional na tela produzem um efeito tridimensional assinalável, se compararmos com outras obras deste período. Mesmo os fundos a negro foram construídos a partir de uma justaposição contínua de materiais heterogéneos, papéis colados, arrancados e novamente colados e pintados por cima para obliterar o que está a mais. Esta técnica garante que a composição fique bem definida, dando-lhe simultaneamente um caráter abstrato, criando uma camada pictórica cujo excesso de materialidade pode ter sido motivado pela intenção de aproximar a pintura à dimensão escultórica dos baixos-relevos encontrados nostemplos indianos.Paula Rego associa nesta obra o experimentalismo criativo à abordagem de temas que estavam interditos às mulheres: a explicitação de orgãos genitais e a referência ao ato sexual. Esta é possivelmente a primeira obra artística produzida por uma mulher em Portugal com a figuração de falos, antecedendo os trabalhos de Clara Menéres e de Maria José Aguiar produzidos a partir dos finais dos anos 1960.O tema do «templo indiano» pode remeter para o livro Kamasutra, que teve uma nova tradução para inglês precisamente em 1961 (S. C. Upadhyaya, Kamasutra of Vatsyayana: Complete Translation from the Original, Bombaim: D.B. TaraporevalaSons & Co.). É também no início da década de 1960 que se gera um debate no contexto britânico acerca da proibição da publicação de livros considerados «obscenos» motivado, entre outros casos, pelo processo movido em 1960 pelo Estado Britânico contra a Penguin pela publicação de O amante de Lady Chatterley (1928), de D. H. Lawrence, do qual a editora saiu ilibada. Progressivamente a década vai caminhando para uma maior liberdade na abordagem da sexualidade e reivindicação do sexo livre, ou seja, do prazer sexual sem fins reprodutivos. O Kamasutra e o contexto indiano pré-colonial, com os seus templos decorados com cenas eróticas, surgem nesse momento como modelos de liberdade sexual. PaulaRego, que viaja nesta altura constantemente entre Londres e Portugal, não é indiferente a este contexto cultural. Estas temáticas foram igualmente desenvolvidas em contexto académico pelo seu marido, o reconhecido artista britânico VictorWilling, que lecionaria seminários sobre erotismo na arte e o ritual nas religiões, tendo como referência Georges Bataille, na Slade School of Fine Art neste período 1 . Durante os anos em que viveram e trabalharam juntos, Paula Rego e Victor Willingdesenvolveram uma mútua e profunda admiração artística, partilharam referências estéticas e, segundo a artista, Victor foi a pessoa que melhor compreendeu o seu trabalho. Em carta a Alberto de Lacerda a propósito da primeira exposição individualde Paula Rego, na Sociedade Nacional de Belas-Artes, em Lisboa em 1965, Willing refere a tendência generalizada para atribuir exageradamente um conteúdo erótico à obra de Paula Rego, esclarecendo que as suas obras têm declaradamente umaexpressão sexual, e a sua «imagética é visceral, o que significa intestinos, estômagos, bocas, ânus, órgãos genitais. Os apetites são sentidos pelos órgãos, as emoções provocam reações nos órgãos. O erotismo é uma ideia, não umsentimento» Procurando quebrar os tabus e barreiras sobre os temas que as mulheres podiam comentar e pintar, Paula Rego apresenta neste período uma abordagem mais complexa em relação ao amor livre. Em Indian Temple, a artista comenta a suaprópria experiência e também a realidade vivida pelas mulheres não só em Portugal, como também no Reino Unido, ao introduzir a representação de fetos que simbolizam o medo constante sentido pelas mulheres de engravidar e, consequentemente, a impossibilidade de viverem o amor livre. No seu país de origem, o corpo da mulher foi objeto de normas e leis produzidas pelo Estado Novo que restringiam o acesso à contraceção e impossibilitaram a implementação doplaneamento familiar. Como refere Isabel Freire, até finais da década de 1960, «organizações do Estado, da Igreja, da família, da escola e dos media convergem na missão de aconselhar crianças, jovens e mulheres adultas (solteiras e casadas)para o escondimento do corpo, o apagamento a sensualidade, a censura do erotismo e a diabolização do prazer» 3 . A mesma investigadora conclui que «peranteos imperativos morais restritivos o prazer sexual feminino, os métodos contracetivospouco fiáveis ou disponíveis, […] o elevado aborto clandestino», entre outras circunstâncias, «não é de estranhar que a vida sexual em geral, e das mulheres em particular, fosse marcada pela contenção e o medo» 4 . Paula Rego ensaiou num desenho (a óleo sobre papel), datado de 1960, um«friso para Indian Temple», sendo as imagens de cópula mais evidentes. Esse possível estudo para esta obra foi adquirido à artista pela Galeria de São Mamede em março de 1973 e a sua localização atual é desconhecida."1 Carta de Menez dirigida a Alberto de Lacerda, nov. 1964, Biblioteca Nacional de Portugal (BNP):Espólio Alberto de Lacerda.2 «Paula is not erotic. She is too direct.» Carta de Victor Willing para Alberto de Lacerda, Estoril, 30dez. 1965. BNP: Espólio Alberto de Lacerda.3 Isabel Freire, Sexualidades, Media e Revolução dos Cravos, Lisbon: ICS, 2020, p. 70.4 Idem, p. 76.Texto de Catarina Alfaro e Leonor de Oliveira