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euro_symbol€ 30,000 - 45,000 Base - Estimativa
gavel€ 52,000Vendido
Caixa grande Lusíada estrutura em marfim decoração esculpida "Motivos vegetalistas", ferragens e aplicações em prata recortada e relevada vertente cíngalo-portuguesa séc. XVII (meados) pequenos restauros nas dobradiças, falta de uma aplicação de prata, pequenos defeitos, pés não originais Dimensões (altura x comprimento x largura) - 12 x 31 x 20,5 cm Notas: Rara e importante caixa de grandes dimensões, de corpo paralelepipédico, tampa de levantar plana e ligeiramente saliente (com correntes de prata no interior), soco igualmente saliente e pés de bolacha torneados ligados à caixa por dois travessões rectos. O corpo é constituído por quatro espessas placas de marfim - com ca. 1 cm de espessura -, medindo 29,7 x 9,4 cm as que formam a frente e o tardoz, ensambladas em cauda de andorinha cega, portanto com os malhetes escondidos com pestana à meia-esquadria. Duas excepcionais placas formam a tampa - com 30,7 cm de comprimento - e três formam a base, sabiamente ensambladas em junta plana de encaixe a meia-madeira, fixas com cavilhas também de marfim. A tampa assenta no corpo da caixa através de sulco entalhado que corre ao longo da sua face interior. As placas do corpo da caixa foram cuidadosamente ensambladas com as da base através de três respigas de cada lado maior e duas em cada uma das ilhargas, que assentam sobre os encaixes que a atravessam; uma ensamblagem reforçada por cavilhas de marfim. Muito embora posteriores, os actuais pés torneados seriam semelhantes aos originais, sujeitos a um desgaste físico de que não vemos sinais na face exterior da base, mas que dele encontramos marcas nas travessas dispostas transversalmente e que, sendo originais, nos informam da função primeira desta imponente e sumptuosa peça de mobiliário de âmbito feminino: trata-se de uma caixa de estrado, muito provavelmente para conter os pertences preciosos de uma dama nobre, talvez objectos e materiais ligados à costura e aos bordados, tais como valiosos novelos de retrós de seda e fio de ouro e prata.À excepção do fundo, todas as placas são profusamente entalhadas em baixo-relevo na face exterior com enrolamentos vegetalistas de gavinhas e botões de flor-de-lótus estilizados, denominadas na arte chinesa, de que a cingalesa é também devedora, de baoxiang. Estes enrolamentos apresentam-se dispostos em simetria: dois na frente, verso e ilhargas, em composição emoldurada por simples friso perlado; e quatro no tampo, numa composição quadripartida emoldurada por fino friso perlado e banda de florões de quatro pétalas, uma decoração típica cingalesa. Embora o motivo floral de baoxiang possa ser considerado quintessencialmente cingalês (Coomaraswamy 1956), o tratamento escultórico do marfim, desenvolvido até cerca da metade da espessura das placas (ca. 0,5 cm), é claramente inspirado em fontes gravadas europeias, sendo também ocidental o tónus escultórico, de fino relevo, que de alguma forma se aproxima do naturalismo botânico do melhor baixo-relevo pétreo tal como praticado na corte mogol dos imperadores Jahangir (r. 1605-1627) e Shah Jahan (r. 1628-1658) - veja-se Michell 2007. O mesmo requinte e decoração floral é observável nas sofisticadas e abundantes montagens em prata vazada, repuxada e cinzelada que, idealizadas logo no momento de concepção original da caixa - dadas as reservas planas depois cobertas pelas montagens vazadas, em contraste cromático entre a prata e o marfim liso -, não apenas contribuem para a unidade estética da sua decoração, como foram estrategicamente colocadas nos pontos de ensamblagem das diversas placas de marfim que formam este grande cofre: cantoneiras polilobadas da tampa, espelhadas no soco; tarjas em cruz na tampa, com losango ao centro como uma curiosa lisonja (escudo heráldico feminino), que dividem a sua composição esquartelada e se prolongam à espessura da tampa, cobrindo a assemblagem das duas grandes placas que a compõem, espelhadas também no soco; cantoneiras verticais cobrindo as arestas do corpo da caixa; e dobradiças cujos planos se prolongam desmesuradamente terminando em medalhão polilobado, vazado, presentes tanto no exterior (tardoz) com no interior (tampa), que remetem para protótipos medievais e islâmicos. Das montagens fazem igualmente parte as pegas das ilhargas, forjadas e lavradas a lima, como que torneadas, excepcionais no peso dado serem maciças e, claro, a fechadura (dupla, de mola), com espelho em forma de escudete, ladeado por quatro largas tachas hemisféricas, e uma extraordinária chave decorada com elementos florais estilizados, vazados.A qualidade do entalhe, bem visível nas micrografias (10x), é em tudo comparável à das melhores peças produzidas ainda para o mercado português (até 1658), em particular as que, possuindo uma estrutura de madeira de teca faixeada a tartaruga ou por vezes de cobre dourado (ou até folhas de mica, moscovite), são integralmente cobertas por finas placas de marfim vazadas e entalhadas - veja-se o pequeno contador de duas portas do Ashmolean Museum of Art, Oxford (inv. EA1976.6) que, apresentando um marcado cunho da arte e gosto cingaleses, poderá datar ainda da primeira metade do século XVII (Veenendaal 2014, pp. 38-39; veja-se Jordan Gschwend e Beltz, 2010, cat. 51-52, pp. 120-121). A principal diferença reside no material, que no caso da nossa caixa é de uma enorme opulência e liberalidade dada a extraordinária espessura das placas, a lembrar os primeiros cofres ainda produzidos em Kottee nos meados do século XVI, quando a tradição pela escultura em médio e alto-relevo, devida aos mestres entalhadores de origem Tamil da corte 'imperial', não se tinha ainda perdido (Ferrão 1990; Jaffer e Schwabe 1999; e Jordan Gschwend e Beltz, 2010). Um dos exemplares desta produção faixeada, com finas placas de marfim vazado, que melhor se pode comparar com a presente, é uma caixa com a mesma forma (25,2 cm de comprimento), semelhante decoração, muito embora muito menos refinada, e idênticas montagens, em particular quanto às tachas da fechadura, datável da segunda metade do século XVII e conservada no Rijksmuseum, Amesterdão, inv. BK-1971-30 (Veenendaal 2014, p. 38). A finura da decoração entalhada da nossa caixa contrasta, então, com peças semelhantes em marfim e também em ébano realizadas já na segunda metade do século XVII para o mercado holandês que, sendo semelhantes no repertório floral, são muito diferentes na execução e igualmente na escala dos motivos, mais larga, e que se agigantará no final do século. Refiro-me a cofres e contadores (Veenendaal 2014, p. 31), mas também a caixas de cachimbo, tal como as que se conservam, por exemplo, no Victoria and Albert Museum, Londres, inv. W147-1928, e no Asian Civilisations Museum, Singapore (Veenendaal 2014, p. 47; Jaffer 2002, cat. 18, pp. 50-51; e Chong 2013, cat. 143, p. 131). As montagens em prata da nossa caixa são, por sua vez, como se pode ver no tipo de punções utilizados no cinzelado (ver micrografias), muito semelhantes às de um pequeno polvorinho cingalês em marfim (para a pólvora fina, destinada a encher a caçoleta da arma) datável de meados de Seiscentos (Dias 2004, cat. 69, pp. 168-169; veja-se também Crespo 2014, cat. 111, pp. 172-173). As suas generosas dimensões, o nível do trabalho escultórico do marfim e das montagens argênteas, e acima de tudo a circunstância de ter sido construída com recurso a muito espessas placas de marfim africano, tornam esta caixa num unicum pela sua raridade e ao mesmo tempo num tour de force pela qualidade técnica e artística que a diferencia de todas quantas conhecemos.Bibliografia: Carvalho, Pedro de Moura (ed.), Luxury for Export. Artistic Exchange between India and Portugal around 1600 (cat. exp.), Boston, Isabella Stewart Gardner Museum, 2008; Chong, Alan et al., Devotion and Desire. Cross-cultural art in Asia. New Acquisitions, Singapore, Asian Civilisations Museum, 2013; Coomaraswamy, Ananda K., Mediaeval Sinhalese Art, Nova Deli, Munsharam Manoharlal, 1956; Crespo, Hugo Miguel, Jóias da Carreira da Índia (cat. exp.), Lisboa, Fundação Oriente, 2014; Dias, Pedro, A Arte do Marfim. O Mundo onde os Portugueses chegaram, Porto, Pedro Bourbon de Aguiar Branco V.O.C. Antiguidades, 2004; Ferrão, Bernardo, Mobiliário Português dos Primórdios ao Maneirismo, Vol. 3 (Índia e Japão), Porto, Lello & Irmão Editores, 1990, maxime pp. 77-91; Jaffer, Amin, Luxury Goods from India. The Art of the Cabinet-Maker, London, V&A Publications, 2002; Jaffer, Amin, e Schwabe, Melanie Anne, "A group of sixteenth-century caskets from Ceylon", in Apollo, 149.445, 1999, pp. 3-14; Jordan Gschwend, Annemarie, e Beltz, Johannes (eds.), Elfenbeine aus Ceylon: Luxusgüter für Katharina von Habsburg (1507-1578) (cat. exp.), Zürich, Museum Rietberg, 2010, maxime cats. 12, 18-19, 21-23, 50-52; Michell, George, The Majesty of Mughal Decoration. The Art and Architecture of Islamic India, London, Thames and Hudson, 2007; Veenendaal, Jan, Asian Art and Dutch Taste, Zwolle, The Hague, Gemeentemuseum, 2014; Seipel, Wilfried (ed.), Exotica. Portugals Entdeckungen im Spiegel fürstlicher Kunst- und Wunderkammern der Renaissance (cat. exp.), Vienna - Milano, Kunsthistorisches Museum - Skira, 2000, cats. 147, 149-153.Hugo Miguel Crespo, Maio de 2015