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31 de Maio
“Afina os pífare peras caixeras!”
O quadro “O Bando de S. Jorge (Os Pretos de S. Jorge)”, de José Malhoa
“A procissão do Corpus Christi!... Onde isto vai, essa Páscoa dos bons
pretinhos vestidos d’encarnado! Com que fidalgo orgulho, com que
ênfase sacerdotal eles marchavam em linha, pífanos e tambores soando,
rua fora, entre as colegiadas e o primeiro corcel de batalha
de S. Jorge!... Lisboa era deles, e não havia ninguém que ao ver passar
a procissão, cruzes sem conta, padres às grosas, e irmãos do Santíssimo
aos milheiros, não exclamasse com impaciência, para os lados
– que estopada! tomara já cá os pretos!”
Fialho d’Almeida - “Vida Irónica (Jornal dum Vagabundo)”, cap. IV, 1892
Esta pintura de José Malhoa reveste-se de particular interesse
por diversas razões, entre as quais, se destaca a sua originalidade, tanto
no que diz respeito à obra, quanto ao assunto tratado.
Apresentada pela primeira vez na sexta exposição do “Grupo do Leão”
(Exposição de Arte Moderna), em 1886, volta a ser exibida no ano
seguinte, por ocasião do 14º certame da então decadente Sociedade
Promotora de Belas Artes.
No contexto da obra de Malhoa, constitui um dos raros exemplares
conhecidos da sua primeira fase, executada com apenas 30 anos,
quando lutava ainda pelo reconhecimento e afirmação como artista.
Ao longo da década de 80 do século XIX, o pintor ainda se encontrava
muito subordinado à estética naturalista do “Grupo do Leão”, liderada
por Silva Porto, e pela preeminência da temática da Paisagem. Teremos
de esperar pela década seguinte, marcada pelas exposições do Grémio
Artístico, para assistirmos à mutação que se opera na sua pintura,
trocando progressivamente a Paisagem pela Pintura de Género.
São por isso mais escassas (não obstante a sua presença em diversos
certames expositivos), as obras desta temática nas primeiras décadas.
Uma espécie de preparação para o estilo de sucesso que caracterizará
a sua carreira, e um invulgar exemplo do interesse pelos costumes
e ambientes populares lisboetas, que irá culminar no famoso quadro
O Fado, já em 1910.
Mas o aspecto mais relevante desta pintura recai sobre o seu conteúdo,
que lhe outorga uma peculiar importância documental, cultural
e etnográfica. O tema enquadra-se nas célebres procissões do Corpo
de Deus (Corpus Christi) que, desde a Idade Média, animavam as ruas de
Lisboa, e que se estenderam a outras cidades do continente, das ilhas
(Horta, Faial), e do Brasil. A ideia terá surgido a Malhoa nas
festividades que decorreram em Junho de 1885, para o que terá
executado alguns estudos, um dos quais, figurando uma cabeça de
negro, foi igualmente exposto em 1886.
O chamado Bando de S. Jorge, ou Pretos de S. Jorge, era considerado
por muitos autores e participantes das festividades, o aspecto mais
decorativo da procissão, e o que mais atraía a atenção popular,
como disso é exemplo o conhecido texto de Fialho d’Almeida, de 1892,
então ilustrado por uma aguarela de Roque Gameiro.
Nuno de Saldanha
Doutor em História da Arte, professor e historiador de Arte
Autor, entre outras obras, de:
“José Malhoa – Tradição e Modernidade, Luminismo e Tenebrismo”.
Lisboa: SCRIBE, 2010;
“José Malhoa - 1855-1933 - Catálogo Raisonné”.
Lisboa: SCRIBE, 2012.
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