Leilão 169 - page 362

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cabral moncada leilões 169
Nota: rara e importante caixa de grandes dimensões, de corpo
paralelepipédico, tampa de levantar plana e ligeiramente saliente (com
correntes de prata no interior), soco igualmente saliente e pés de
bolacha torneados ligados à caixa por dois travessões rectos. O corpo
é constituído por quatro espessas placas de marfim - com ca. 1 cm de
espessura -, medindo 29,7 x 9,4 cm as que formam a frente e o tardoz,
ensambladas em cauda de andorinha cega, portanto com os malhetes
escondidos com pestana à meia-esquadria. Duas excepcionais placas
formam a tampa - com 30,7 cm de comprimento - e três formam
a base, sabiamente ensambladas em junta plana de encaixe a meia-
madeira, fixas com cavilhas também de marfim. A tampa assenta
no corpo da caixa através de sulco entalhado que corre ao longo da sua
face interior. As placas do corpo da caixa foram cuidadosamente
ensambladas com as da base através de três respigas de cada lado maior
e duas em cada uma das ilhargas, que assentam sobre os encaixes que
a atravessam; uma ensamblagem reforçada por cavilhas de marfim.
Muito embora posteriores, os actuais pés torneados seriam semelhantes
aos originais, sujeitos a um desgaste físico de que não vemos sinais na
face exterior da base, mas que dele encontramos marcas nas travessas
dispostas transversalmente e que, sendo originais, nos informam da
função primeira desta imponente e sumptuosa peça de mobiliário de
âmbito feminino: trata-se de uma caixa de estrado, muito
provavelmente para conter os pertences preciosos de uma dama nobre,
talvez objectos e materiais ligados à costura e aos bordados, tais como
valiosos novelos de retrós de seda e fio de ouro e prata.
À excepção do fundo, todas as placas são profusamente entalhadas em
baixo-relevo na face exterior com enrolamentos vegetalistas de gavinhas
e botões de flor-de-lótus estilizados, denominadas na arte chinesa, de
que a cingalesa é também devedora, de baoxiang. Estes enrolamentos
apresentam-se dispostos em simetria: dois na frente, verso e ilhargas,
em composição emoldurada por simples friso perlado; e quatro
no tampo, numa composição quadripartida emoldurada por fino friso
perlado e banda de florões de quatro pétalas, uma decoração típica
cingalesa. Embora o motivo floral de baoxiang possa ser considerado
quintessencialmente cingalês (Coomaraswamy 1956), o tratamento
escultórico do marfim, desenvolvido até cerca da metade da espessura
das placas (ca. 0,5 cm), é claramente inspirado em fontes gravadas
europeias, sendo também ocidental o tónus escultórico, de fino relevo,
que de alguma forma se aproxima do naturalismo botânico do melhor
baixo-relevo pétreo tal como praticado na corte mogol dos imperadores
Jahangir (r. 1605-1627) e Shah Jahan (r. 1628-1658) - veja-se Michell
2007. O mesmo requinte e decoração floral é observável nas sofisticadas
e abundantes montagens em prata vazada, repuxada e cinzelada que,
idealizadas logo no momento de concepção original da caixa - dadas
as reservas planas depois cobertas pelas montagens vazadas, em
contraste cromático entre a prata e o marfim liso -, não apenas
contribuem para a unidade estética da sua decoração, como foram
estrategicamente colocadas nos pontos de ensamblagem das diversas
placas de marfim que formam este grande cofre: cantoneiras polilobadas
da tampa, espelhadas no soco; tarjas em cruz na tampa, com losango
ao centro como uma curiosa lisonja (escudo heráldico feminino),
que dividem a sua composição esquartelada e se prolongam à espessura
da tampa, cobrindo a assemblagem das duas grandes placas que
a compõem, espelhadas também no soco; cantoneiras verticais cobrindo
as arestas do corpo da caixa; e dobradiças cujos planos se prolongam
desmesuradamente terminando em medalhão polilobado, vazado,
presentes tanto no exterior (tardoz) com no interior (tampa),
que remetem para protótipos medievais e islâmicos. Das montagens
fazem igualmente parte as pegas das ilhargas, forjadas e lavradas a
lima, como que torneadas, excepcionais no peso dado serem maciças e,
claro, a fechadura (dupla, de mola), com espelho em forma de escudete,
ladeado por quatro largas tachas hemisféricas, e uma extraordinária
chave decorada com elementos florais estilizados, vazados.
A qualidade do entalhe, bem visível nas micrografias (10x), é em tudo
comparável à das melhores peças produzidas ainda para o mercado
português (até 1658), em particular as que, possuindo uma estrutura de
madeira de teca faixeada a tartaruga ou por vezes de cobre dourado (ou
até folhas de mica, moscovite), são integralmente cobertas por finas
placas de marfim vazadas e entalhadas - veja-se o pequeno contador de
duas portas do Ashmolean Museum of Art, Oxford (inv. EA1976.6) que,
apresentando um marcado cunho da arte e gosto cingaleses, poderá
datar ainda da primeira metade do século XVII (Veenendaal 2014, pp.
38-39; veja-se Jordan Gschwend e Beltz, 2010, cat. 51-52, pp. 120-121).
A principal diferença reside no material,
que no caso da nossa caixa é de uma enorme opulência e liberalidade
dada a extraordinária espessura das placas, a lembrar os primeiros
cofres ainda produzidos em Kotte e nos meados do século XVI, quando
a tradição pela escultura em médio e alto-relevo, devida aos mestres
entalhadores de origem Tamil da corte ‘imperial’, não se tinha ainda
perdido (Ferrão 1990; Jaffer e Schwabe 1999; e Jordan Gschwend e
Beltz, 2010). Um dos exemplares desta produção faixeada, com finas
placas de marfim vazado, que melhor se pode comparar com a presente,
é uma caixa com a mesma forma (25,2 cm de comprimento), semelhante
decoração, muito embora muito menos refinada, e idênticas montagens,
em particular quanto às tachas da fechadura, datável da segunda
metade do século XVII e conservada no Rijksmuseum, Amesterdão, inv.
BK-1971-30 (Veenendaal 2014, p. 38). A finura da decoração entalhada
da nossa caixa contrasta, então, com peças semelhantes em marfim
e também em ébano realizadas já na segunda metade do século XVII
para o mercado holandês que, sendo semelhantes no repertório floral,
são muito diferentes na execução e igualmente na escala dos motivos,
mais larga, e que se agigantará no final do século. Refiro-me a cofres
e contadores (Veenendaal 2014, p. 31), mas também a caixas de
cachimbo, tal como as que se conservam, por exemplo, no Victoria
and Albert Museum, Londres, inv. W147-1928, e no Asian Civilisations
Museum, Singapore (Veenendaal 2014, p. 47; Jaffer 2002, cat. 18,
1...,352,353,354,355,356,357,358,359,360,361 363,364,365,366,367,368,369,370,371,372,...556
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