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cabral moncada leilões 161
Raro e importante cofre em forma de arqueta, de corpo paralelepipédico, tampo plano e supedâneo salientes. O corpo é constituído por quatro placas de marfim
ensambladas provavelmente em cauda de andorinha, posteriormente fixadas por pinos metálicos, estando oculta a união por cantoneiras de prata gravadas a
buril. Duas placas formam o tampo e outras duas a base, sabiamente ensambladas em junta plana de encaixe “a meia-madeira”. À excepção do fundo, todas as
placas são profusamente entalhadas em baixo-relevo com enrolamentos vegetalistas enquadrando, em cada face, a modo de medalhões (dois por face), variações
do ganso-de-cabeça-listada (hamsa) ou Anser indicus, animal sagrado do Budismo e do Hinduísmo, símbolo auspicioso de união perfeita, harmonia e vida.
Surgem igualmente um hamsa com cabeça de leão (simha) na ilharga direita e um simha com cabeça de makara (dragão-crocodilo) na frente. O tampo (com
pega em prata cinzelada) é decorado por cercadura de enrolamentos de flores de lótus, hamsa e simha, tendo o campo dois simha afrontados (símbolo régio
cingalês). Observam-se ainda vestígios da aplicação de folha de ouro brunida pela superfície entalhada e bem polida, que contrastaria com o interior forrado a
tafetá de seda carmesim, uma cor exclusiva da realeza. Das ferragens de prata, únicas e testemunho importante da prataria cingalesa deste período, sobressai a
fechadura delicadamente cinzelada, como se pode observar nas micrografias (10x e 150x). A lingueta apresenta uma raríssima representação de esquilo-gigante-
cinzento do Ceilão (dadu-lena em Sinhala) com sua característica cauda comprida (Ratufa macroura) e, no topo, uma cobra-capelo (naya), a temível e venenosa
cobra-indiana (Naja naja ceylonicus). O espelho, em forma de escudete recortado a modo heráldico, é esquartelado, sendo decorado por um pombo-torcaz
(mahavila-goya) ou Columba torringtoniae e uma lebre-indiana (hava) ou Lepus nigricollis no primeiro quartel; um leão simha rampante no segundo e terceiro;
e por um gavião-variável (konde-rajaliya), ou Nisaetus cirrhatus, no último. O presente cofre pertence a muito restrito grupo de outros também produzidos nas
oficinas régias do Ceilão (Kotte, S tavaka e Kandy) desde meados de Quinhentos, sob influência portuguesa e destinados às cortes de Lisboa e Goa.
Desses destacam-se os dois, hoje em Munique, oferecidos por ocasião da embaixada enviada em 1542 por Bhuvanekabahu VII a D. João III. Neles se observa a
inigualável mestria dos entalhadores (liyana vaduvo) e ourives (badallu) régios de Kotte, muitos de origem Tamil. Após a destruição da capital em 1565 e a
transferência para a cidade portuária de Colombo dominada pelos Portugueses, a sofisticação do entalhe do marfim tal como praticado na oficina régia, o
expressivo médio- e alto-relevo com recurso a placas de grande espessura e que caracteriza estes primeiros cofres, ter-se-á de certo modo perdido. Será num clima
de contínuos conflitos bélicos e uma crescente influência portuguesa que terá sido produzido este cofre-arqueta, seguindo modelo medieval europeu, mais raro
que os de tampa trifacetada. O seu entalhe em baixo-relevo é afim ao das laterais das tampas e emolduramentos dos cofres de meados de Quinhentos de Viena,
Londres, Berlim e Boston, sendo em tudo semelhante ao da colecção Távora Sequeira Pinto cujo centro de produção será Kandy, no centro da ilha, e onde podemos
encontrar precisamente a fauna endémica representada na preciosa fechadura deste cofre. À sua importância acresce a proveniência, tendo pertencido à colecção
do rei D. Fernando II, chegando até nós pela mão dos actuais herdeiros da condessa d’Edla.
Lisboa, Agosto de 2014
Hugo Miguel Crespo